11/06/2024 às 12h10min - Atualizada em 11/06/2024 às 18h03min

Fim da saidinha de presos: a propaganda opressiva venceu

Congresso Nacional derrubou o veto presidencial, que restabelecia, em parte, a saída temporária, importante instrumento de reinserção do condenado na sociedade. 

FERREIRA ANTUNES
Divulgação

Marcelo Aith*

“Abandonai toda a esperança, vós que entrais”. Esta frase, escrita no portão do Inferno, da “Divina Comédia”, de Dante Alighieri, deveria estar na entrada de quase todas as unidades prisionais brasileiras. O sistema prisional brasileiro é cruel, degradante, desumano e todos os demais adjetivos similares que possam vir à cabeça.

Esse anacrônico e obsoleto sistema carcerário, que não ressocializa nem impede que haja o arrefecimento de crimes, que não inibe a reincidência e nem impede que jovens comecem a delinquir. Esse arcaico e obsoleto sistema, máquina de fazer crueldades e desumanidades às pessoas presas, perde um dos poucos instrumentos eficazes de manutenção do bom convívio social que eram as saídas temporárias. 

Embalados por uma publicidade opressiva que inflama o consciente coletivo com a ideia que as pessoas que cometem algum tipo de crime tem que sofrer as consequências de seus atos, independentemente do status caótico dos presídios, o Congresso Nacional derrubou o veto presidencial, que restabelecia, em parte, a saída temporária, importante instrumento de reinserção do condenado na sociedade. 

Passados alguns dias da derrubada do veto, restam alguns rescaldos dessa infeliz decisão do Congresso Nacional a serem elucidados. 

Falando em rescaldo, lembro do meu avô João, imigrante Sírio, que diante de qualquer dificuldade falava sobre a enxurrada. Dizia ele: “quando a enxurrada vem, não queira segurá-la com seus braços, deixa-a passar e no outro dia, quando o sol raiar, verá os estragos”. É exatamente isso que tratarei aqui! O que sobrou após o estrago feito pelo Congresso Nacional ao praticamente extinguir a saída temporária.

Com a derrubada do veto, ficou em suspenso a definição, por exemplo, da situação das pessoas que já estavam cumprindo suas penas antes da entrada em vigor da Lei 14.843/2024. Serão preservados os seus direitos ou a norma retroagirá para alcançá-los, impedindo-os de fruir do direito? Para responder a essa dúvida, há que ser analisada a natureza jurídica na referida norma, ou seja, é uma norma penal ou processual penal?

Os desavisados perguntarão: o que isso tem a ver com a aplicação imediata da Lei que praticamente extinguiu a “saidinha”? Por que não impedir esses “criminosos” do direito à saída temporária imediatamente? 

A resposta é simples: se reconhecermos a Lei de Execução Penal como uma norma de natureza penal (material ou substancial), a nova Lei somente alcançará aqueles que iniciarem a execução de suas penas após a entrada em vigor da norma. Já se considerarmos a natureza processual penal da Lei de Execução Penal, as alterações introduzidas pela nova lei alcançarão, como regra, as pessoas que já estão cumprindo a execução (tempus regit actum). 

Para melhor compreendermos as diferenças, nada mais pertinente do que trazer exemplos. Um exemplo de norma penal são as regras de fixação da pena e os tipos penais,  que definem o conceito de crime e que estabelecem as causas de extinção da punibilidade. Por outro lado, as normas processuais são aquelas destinadas a regular a relação jurídica entre as partes (acusação e réus) e os atos do juízo.

O leitor deve imaginar: que pueris esses exemplos! No que repercutem na execução penal?

Para responder essa nova indagação, temos que mergulhar, não muito profundamente, na busca por entender o que se executa após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. 

Pois bem. 

Vamos lá com outro exemplo. Suponhamos que uma pessoa é condenada a 9 anos prisão, em regime inicial fechado, o que se executa? 

Executa-se o comando constante da sentença, ou seja, a pena privativa de liberdade. Socorrendo-se do exemplo acima, considerando que a pena é o objeto central da execução, bem como que para se fixar a pena há que se buscar regras previstas no Código Penal, inequivocamente estamos diante de uma de norma material (penal).

Para além disso, não se pode olvidar que a Lei de Execução Penal regula a vida do condenado durante a privação da liberdade de locomoção, na medida em que estabelece os seus direitos e deveres, bem como as regras de progressão de regime, remição de pena, livramento condicional, etc., todas ligadas umbilicalmente à pessoa do preso. Todas implicam efetivamente no cumprimento da pena. Assim reconhecer a natureza material (penal) da norma se impõe.

Com efeito, reconhecendo-se a natureza penal da Lei de Execução, nenhuma alteração legislativa, como as impostas pela Lei 14.843/2024, que suprimiu direitos dos executados, pode alcançar as pessoas que já estão cumprindo as suas penas. 

Portanto, as execuções iniciadas antes 11 de abril de 2024, não são alcançadas pela alteração, assim farão jus as saídas temporárias, haja vista que trouxe regras que agravam o cumprimento da pena.

Há algumas decisões corajosas e importantes nos Tribunais brasileiros, como a proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “A Lei 14.843/24, que alterou disposições da LEP, tornou o cumprimento da pena mais gravoso ao condenado por crime hediondo, passando a proibir o deferimento da saída temporária e do trabalho externo sem vigilância direta. Portanto, a referida norma, ao menos neste ponto, possui inegável conotação material, não podendo retroagir em prejuízo do paciente, conforme comando constitucional previsto no art.5, XL, da CF”.

O artigo 5º, inciso XL, da Constituição da República, aponta que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Com efeito, ao retirar um direito do executado — que possibilitaria que ele, após o cumprimento de parte de sua pena e estando no regime semiaberto, saísse do cárcere por um determinado período para retomar o convívio familiar e frequentar curso supletivo profissionalizante — estará impondo ao executado um gravame, portanto, não pode retroagir.

Inequivocamente, a alteração agravou o cumprimento da pena e não pode ser aplicado imediatamente às execuções em curso.

Com isso, o Poder Judiciário será submetido a um grande desafio quando começarem a surgir em larga escala pedidos de saída temporária, uma vez que a grande mídia iniciará uma batalha para convencer a população que o judiciário, se deferir os pedidos, estará compactuando com a impunidade, ou alguém duvida que será esse o discurso?

Já durante a votação no Congresso Nacional dos vetos presidenciais, deputados e senadores, favoráveis à derrubada do veto, fizeram calorosos discursos recheado de meias verdades, distorcendo realidade. Um exemplo claro foi o discurso do Senador Flávio Bolsonaro, relator do projeto de lei no Senado, que homenageou um policial que foi assassinado por um condenado que estava no gozo da saída temporária: “Foi assassinado covardemente por uma dessas pessoas que saiu durante a ‘saidinha’ e não só não retornou como matou um pai de família, um policial militar. Então nós temos a obrigação de completar o serviço agora: não vamos abrir mais brecha nenhuma para esse tipo de benefício. O voto é não, a favor das vítimas e contra os bandidos”.

Porém, a realidade nacional é absolutamente diversa do fatídico episódio envolvendo o Policial Militar mineiro. Em verdade, o índice de não regresso após a saída temporária é de 2% a 5%, sendo o percentual de crimes cometidos por liberados durante esse período é inferior a 1%. Um importante paradigma foi a situação no Estado de São Paulo, que no período natalino de 2023, 34 mil presos tiveram o direito à saída temporária, sendo que apenas 1,5 mil não retornaram no prazo estabelecido no decreto. No entanto, somente 81 cometeram algum tipo de delito, ou seja, aproximadamente 0,23% praticaram crime. 

Não se está aqui a diminuir a dor daquele que foi vítima da conduta delitiva, mas sim objetiva sinalizar a desproporcionalidade da restrição do direito por conta de atos de uma ínfima minoria.  

Dessa forma, caberá ao Judiciário brasileiro decidir se segue as regras concernentes a irretroatividade do direito material, haja vista que a Lei de Execução Penal traz regras substantivas (penais), ou atender ao clamor social, eivado de informações divorciadas da realidade, e restringir o direito daqueles que já estavam cumprindo suas penas quando da entrada em vigor da Lei 14. 843/24.

Oxalá, que o entendimento dos juízes seja pela aplicação do artigo 1º da Lei de Execução Penal, que preconiza como um dos objetivos proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado.

*Marcelo Aith é advogado criminalista. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca

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CAIO FERREIRA PRATES
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