09/01/2023 às 13h32min - Atualizada em 10/01/2023 às 00h08min

Povos indígenas em contexto urbano: uma realidade esquecida pelos governos

Dados do censo do IBGE devem apontar a quantidade de indígenas vivendo nas cidades

SALA DA NOTÍCIA Camila Del Nero
Repam
Por Joelma Viana

Muitas cidades amazônicas, segundo historiadores, foram construídas em cima de territórios indígenas, cuja população foi expulsa para as áreas rurais tendo de se refugiar para não serem escravizados ou mortos por aqueles que se diziam “donos” das terras. Durante muitos anos, milhares de indígenas viveram afastados dos grandes centros, mas esse cenário mudou, e hoje percebe-se um número cada vez maior dessas populações nos centros urbanos.

Segundo Marcivana Sateré Mawé, coordenadora geral da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME), vários são os motivos que contribuem para esse aumento, o primeiro deles é de que os principais serviços estão centralizados nas cidades, como saúde, educação e oportunidade de trabalho. Um levantamento preliminar das próprias organizações apontava o número de 35 mil indígenas vivendo na cidade de Manaus. Porém, a invisibilidade e a falta de perguntas direcionadas às populações contribuem para a subnotificação.

 Por esse motivo, o movimento indígena iniciou uma articulação junto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para identificar esses grupos e garantir direitos, que muitas vezes são negados a essas populações: “Fizemos com o IBGE, então, uma parceria. Nós mapeamos aqui na cidade de Manaus as principais áreas com maior concentração de indígenas, que seriam áreas da qual o IBGE teria assim um maior cuidado no Censo, trazendo sempre uma pergunta que seria fundamental para essa identificação. Isso porque nos censos anteriores, muitas vezes, eram: se você é branco? Se você é pardo ou negro? E isso dificultava a identificação indígena, por quê? Porque a maioria de nós indígenas, seja na aldeia, seja na cidade, nas nossas certidões de nascimento consta como pardo e isso é muito confuso na hora da pergunta que os censitários faziam”, declarou Marcivana.

Além da parceria, a COPIME fez um trabalho de sensibilização junto as comunidades indígenas reforçando a importância da autodeclaração. Foram produzidos vídeos na língua materna reforçando essa necessidade. “Não é que repentinamente uma grande presença indígena, isso sempre existiu, até porque as cidades foram as primeiras aldeias que foram colonizadas durante o período de invasão do Brasil. Naquela época, 2019, a gente chamava de senso indígena, porque precisamos tirar da invisibilidade os povos indígenas, conhecer a realidade indígena nas cidades para que a gente possa criar ações de enfretamento a essas mazelas”, afirmou. A esperança das organizações é que a conclusão do censo do IBGE traga dados reais da quantidade de indígenas vivendo na área urbana de Manaus.

 A subnotificação de populações indígenas em contexto urbano não é uma realidade apenas de Manaus, outras cidades também enfrentam o mesmo problema, que pode ser solucionado com a conclusão do Censo do IBGE. Em Boa Vista (RO), por exemplo, não há uma pesquisa que mostre a quantidade de indígenas vivendo na área urbana. De acordo com Eliando Pedro de Souza, da etnia Wapichana, e coordenador da Organização dos Indígenas da cidade de Boa Vista (ODIC), existiu um pequeno levantamento há 15 anos, mas os dados não condizem com a realidade atual.

“Não existe uma pesquisa que possa dizer a quantidade de indígenas que vivem em contexto urbano aqui no estado de Roraima. O que posso dizer é que existiu um pequeno levantamento, mais ou menos 15 anos atrás pelo município de Boa Vista quando fazia um levantamento da situação socioeconômico das populações, e ali foi levantado uma possibilidade de 35 mil indígenas vivendo em contexto urbano, talvez esse dado seja mais próximo da realidade atualmente, enquanto que o IBGE dá um pouco mais de 8 mil. A gente até questiona porque não se sabe como são feitas essas indagações”, afirmou Eliandro.

Na cidade de Boa Vista (RR) existem hoje aproximadamente cinco organizações indígenas no contexto urbano que discutem a presença dessas populações na cidade, algumas focam mais a parte da cultura, da dança, artesanato, e outras estão votadas as questões da saúde e da educação.

 A saída das populações para as cidades não significa dizer que deixaram de ser indígenas, e essa realidade precisa ser mudada, principalmente por quem cria as políticas públicas. “A mudança dos indígenas para as cidades não implica perda da identidade. A gente ouve diversas acusações: há! não, o indígena está utilizando um celular ou está dirigindo um automóvel, enfim, essa ideia de que os povos indígenas têm que estar isolados e não se apropriar daquilo que eles possam considerar de uso na sociedade não-indígena está ultrapassada. Nenhum indivíduo vai deixar de ser indígena porque aprende a dirigir um automóvel ou a língua portuguesa, ou até uma outra língua estrangeira, enfim, não há mudança na identidade”, declarou Luciana Carvalho, antropóloga e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).

 Luciana destaca ainda, que as cidades não estão preparadas para receber bem os indígenas, e muitas vezes não estão preparadas sequer para perceber a presença dessas pessoas no ambiente urbano, tanto que é evidente a falta de políticas públicas específicas dirigidas à essas populações que migram para as cidades a fim de estudar ou trabalhar.
 A maioria das cidades foram pensadas a partir de um desenvolvimento econômico que não combina com a cultura indígena, como se essas populações não fossem parte desta realidade. Para Marcivana Sateré Mawé “as cidades também são territórios indígenas”, e por esse motivo as organizações tem se mobilizado pelo direito à cidade. “A COPIME hoje discute muito a questão dos povos e o direito a cidade, mas uma cidade que traga dignidade, oportunidade e qualidade de vida para seus habitantes”, finalizou.

 Eliandro Souza reforça que os órgãos de Estado não foram preparados para atender os indígenas. “Uma das questões é a comunicação que os funcionários não tem o domínio ou nem conhecimento histórico desses povos, o que dificulta o acesso às políticas públicas, em especial à saúde, isso porque na cultura não-indígena a doença se dá apenas no corpo, para nós povos indígenas, a doença se dá também na alma”.

 As organizações indígenas esperam que a conclusão do Censo do IBGE tire da invisibilidade dos povos indígenas que vivem nas cidades, e que políticas públicas sejam criadas para essas populações.

*Joelma Viana dos Santos é membro do núcleo de comunicação da REPAM. É mestre em educação, especialista em jornalismo científico e graduada em Letras. Atua a 21 anos na comunicação radiofônica. É gestora da Rede de Notícias da Amazônia e docente de ensino Superior no Centro Universitário da Amazônia, onde atua nos cursos de comunicação social e pedagogia.
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