22/04/2024 às 22h33min - Atualizada em 23/04/2024 às 16h04min

Afeto além dos bailes: Crescimento da cultura ballroom em São Paulo e as tecnologias de acolhimento

Há 8 anos presente na cena local, os balls, as categorias, as famílias e casas já fazem parte da cultura de resistência da comunidade LGBTQIAP+ na capital paulista

Guilherme Montenegro e Nicoly dos Santos
Everett Collection
Já faz parte do cotidiano da região central, encontrar a comunidade ballroom ocupando o espaço público com ensaios de diversas categorias performáticas. A cultura tem ganhado destaque na cidade de São Paulo nos últimos anos, se consolidando como potência artística de populações que historicamente estiveram excluídas dos grandes circuitos. 
Originado nos Estados Unidos, o movimento teve início nas décadas de 1960 e 1970 como uma forma de acolhimento e espaço seguro para pessoas marginalizadas, principalmente pessoas negras, latinas e LGBTQIAP+ que encontravam dificuldades em participar dos espaços tradicionais de entretenimento, dança e competição. 
 
Esse movimento tem sido impulsionado pela busca por visibilidade e reconhecimento dessas comunidades que encontram na cultura ballroom uma forma de lutar contra o preconceito e a invisibilidade social e cultural. Além disso, a cultura ballroom também tem se mostrado como uma forma de resistência, acolhimento e enfrentamento às opressões e desigualdades presentes na sociedade.

Do surgimento da cena no Brasil ao Kikiball
 
No Brasil, a cultura teve seus primeiros sinais nos anos 2000, com a influência do voguing, dança criada em Nova Yorque e elemento muito importante das balls, misturando o street dance e as poses de modelos da capa da revista Vogue. Aqui a cultura teve a dança como protagonista antes mesmo das casas e as categorias das balls. 
 
O movimento ganhou mais força no Brasil em 2015 com a criação da primeira casa brasileira, a “House of Hands Up", comandada pela mother Eduarda Kona Zion e sediada em Brasília. 
 
Em 2016, é realizado o primeiro ball em São Paulo, pelo coletivo Amem, que segundo o antropólogo Bruno Ribeiro, é um grupo formado por pessoas negras LGBTQIAP+, entre elas bichas, travestis e sapatões pretas. Em entrevista concedida ao portal da FAPCOM, o pesquisador revela que na época em que realizou sua pesquisa (entre 2019 e 2021) era possível catalogar o número de casas e famílias no Brasil, mas hoje é praticamente impossível devido ao boom que essa cultura teve nos últimos anos, fenômeno esse que também foi influenciado por produções audiovisuais como a série “Pose” (2018) da FX, que retrata o surgimento da cena em Nova Yorque. No entanto, a cena local não acumulou só referências externas, Bruno ressalta que o fato da cena no Brasil ser mais recente faz com que o debate sobre expressão de gênero, por exemplo, seja mais oxigenado:
 
“Em Nova Yorque, por exemplo, quando algumas travestis disputam a categoria Femme Queen, em geral elas tem peitão, bundão e cabelão, já no Brasil, não necessáriamente”, ressaltou o acadêmico, que desenvolveu interesse pelo tema a partir de sua própria vivência enquanto bicha preta que vê o fervo e o glamour também como forma de afirmação política.
 
Nesse sentido, os balls do Brasil tem apostado em categorias como “Samba no Pé”, “Passinho”, “Joga a Raba” etc. e como evidencia Bruno, sempre reverenciando figuras históricas que chegaram antes mesmo da cena, como Jorge Lafond, que é homenageado com o já tradicional “Baile Vera Verão” e Madame Satã, personagem emblemático da vida noturna carioca da primeira metade do século XX. 
 
Por todas essas características, os mais novos têm demonstrado preferência pelos Kikiballs. O ballroom tradicional muitas vezes possui um ambiente mais formal, com uma abordagem mais competitiva. Os eventos são estruturados, e os dançarinos competem em frente a um painel de juízes que avaliam seus desempenhos. A cena Kiki, por sua vez, tem uma atmosfera mais descontraída, com um foco maior na celebração, na expressão artística e na diversão. Os eventos Kiki tendem a ser mais festivos, com um clima de festa e camaradagem entre os participantes.
 
 
Diferentes formas de coletividade
 
Por meio de organizações tais como as casas (houses) e competições (balls), busca-se criar espaços seguros e inclusivos para a expressão de identidades de gênero e sexualidade. Conversamos com Félix Pimenta, que é um dos precursores da cena ballroom em São Paulo, a partir do Coletivo Amem e também pai (father) da Casa de Pimentas. Félix é considerado um icon, que são pessoas que se destacam na cena e passam a ganhar reconhecimento nacional e até internacional. O dançarino e MC relatou que uma família se forma a partir do interesse de pessoas que já tem reconhecimento na cena e a partir disso podem exercer a função de mãe, pai ou pãe, contemplando também a identidade de pessoas não-binárias e rompendo com a forma patriarcal que essas categorias familiares são vistas na sociedade. 
 
A Casa de Pimentas foi oficialmente aberta em 2019 e conta com cerca de onze membros. O father revela que a família lida com afeto e acolhimento o tempo todo, às vezes não de forma explícita, mas principalmente no cuidado entre os integrantes. “São pessoas que muitas vezes estão na vulnerabilidade, que são jogados nessa posição, são expulsos de casa ou quando não são expulsos, são excluídos do ambiente familiar, que acabam tendo na casa a possibilidade de se expressar, de se sentir motivados, de sobreviver”, sublinhou Félix. 
 
Com a ampliação dos eventos de ballroom e a visibilidade entre a comunidade negra e LGBTQIAP+, o interesse do público se ampliou. Nossa equipe acompanhou a Festa Amem que precedeu um ball inserido na programação da Virada Cultural de 2023, no Centro Cultural São Paulo. Além de Félix Pimenta, que comandava o cerimonial, encontramos Wesley e Guilherme, dois competidores relativamente novos na cena e que não são vinculados a uma casa, são os chamados 007. Wesley, que é estudante de Publicidade e Propaganda, foi em seu primeiro ball exatamente na edição anterior da Virada Cultural, há cerca de um ano: “Tinha conhecimento do movimento, mas ali foi onde me apaixonei, quis concorrer na categoria de face e baby vogue, que são as que eu mais me identifiquei”, revelou o performer. O que chamou a atenção do auxiliar de logística Guilherme, foi a representatividade:
 
“Ver pessoas que compartilham de experiências semelhantes, ver todos sendo quem são e com muita força, traz inspiração, amo torcer, amo dançar e amo estar, é como um sonho, me sinto seguro”, explicou. Ambos têm a intenção de adentrar uma house, mas ainda buscam experiência, já que estar em uma família envolve responsabilidades."  
 
Existir é Resistir 
 
Essas tecnologias têm se expandido no Brasil também como forma de enfrentar a dura realidade dessa comunidade, já que se trata de um país que enfrenta altos índices de violência contra a população LGBTQIAP+. Foram 276 homicídios em 2021, segundo levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) em parceria com a Aliança Nacional LGBTI+. 
 
Mas as lutas da comunidade ballroom não se resumem à pauta de combate à violência, um outro tema evidenciado nessa cultura é o de conscientização sobre IST’s, sobretudo HIV-Aids. Com festas como Fervo Positivo, o Coletivo Amem também tem essa como uma de suas bandeiras: “A ballroom viu outros lugares de potência para se falar sobre direito à saúde, adesão aos remédios, prevenção e até mesmo o direito a uma morte digna dos que partiram”, finaliza Félix Pimenta.
 
Em uma sociedade que sequer respeita a existência dessa comunidade, todas essas formas de organização tem contribuído para tirar a cena da invisibilidade, reforçando o sentimento que acompanha a cultura ballroom desde o seu surgimento, de celebrar a existência da diversidade com muito glamour e close.
 

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