25/03/2024 às 14h55min - Atualizada em 26/03/2024 às 00h10min

ARTIGO | Um roadmap para a sua empresa eliminar de vez a cultura “tech bro”

Por Carine Roos, fundadora e CEO da Newa*

Redação
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LEGENDA: Carine Roos, CEO e fundadora da Newa. Crédito da imagem: Paulo Liebert / Divulgação

ARTIGO
Um roadmap para a sua empresa eliminar de vez a cultura “tech bro”
Por Carine Roos, fundadora e CEO da Newa*

Estamos em pleno desenvolvimento da Inteligência Artificial e, apesar do aumento da discussão sobre vieses de gênero e raça nos códigos da IA devido à ausência de representatividade de quem desenvolve esta tecnologia, a realidade é que existe uma cultura tóxica ampliada de “tech bro” que empurra as poucas mulheres e pessoas não binárias existentes desse setor. Os estereótipos de gênero e raça são uma barreira à entrada das mulheres na tecnologia, mas os recursos, o apoio e o incentivo podem ajudar a reverter esse quadro.

A tecnologia é parte integrante da maneira como vivemos, trabalhamos e estruturamos a sociedade. Entretanto, as estimativas da proporção de mulheres que trabalham em funções tecnológicas são terríveis – menos de um terço, isto é, 29% das funções no setor digital são ocupadas por mulheres, sendo 1/5 para ocupações STEM. Ainda, pesquisas apontam que mais de 20% das mulheres com mais de 35 anos ainda ocupam cargos juniores (HackerRank), bem como 28% das mulheres que abandonam empregos em tecnologia citam a falta de oportunidades de crescimento profissional como motivo principal (McKinsey, Lean In). 

Na indústria de tecnologia, os homens recebem para a mesma função salários mais altos para o mesmo cargo 60% das vezes (Contratado). Apenas 10,9% das pessoas que ocupam cargos de CEO ou de liderança sênior são mulheres. Em 2022, as mulheres afro-americanas ocuparam 3% de todos os empregos em computação. Por fim, nesse mesmo ano, mulheres negras, multirraciais, indígenas, das ilhas do Pacífico e latinas representaram 6% de todas as novas contratações da indústria de tecnologia. 

Os dados acima escancaram o tamanho do problema - ainda mais quando estamos em pleno desenvolvimento tecnológico da Inteligência Artificial e seus algoritmos que perpetuam o machismo e o racismo - e mostram como existe uma cultura tóxica ampliada de “tech bro” que empurra as poucas mulheres e pessoas não binárias para fora do setor. Eu mesma experienciei essa cultura ao longo de quase dez anos em que trabalhei desenvolvendo projetos de comunicação, tecnologia e direitos humanos nos ecossistemas de startups e inovação. Depois, como empreendedora social, mentorando mais de 2000 mulheres ouvi relatos diários delas por terem experienciado diversas formas de violência e discriminação no ambiente de trabalho por serem mulheres, com ênfase nas mães, negras, trans e pessoas não binárias. O e-book que editei e fui autora, em 2017, “Mulheres líderes na tecnologia”, disponível na Amazon, segue mais atual do que nunca e mostra como as mulheres brasileiras são atravessadas por diferentes formas de violência e discriminação desde à faculdade, passando pelas primeiras experiências de trabalho e depois como executivas, até o momento em que são expelidas desse mercado.

Em Novembro de de 2023, tive a oportunidade de presenciar, em Londres, o lançamento da pesquisa “System update: adressing the gender gap in tech” conduzida pela organização “Fawcett Society”, da qual sou doadora, em parceria com a Virgin Media O2, seguida de um painel com executivas e especialistas da indústria. A pesquisa foi baseada em dados quantitativos e qualitativos com 1.438 pessoas e entrevistas aprofundadas com 21 mulheres do Reino Unido que atualmente trabalham em uma função de tecnologia, ou deixaram a tecnologia ou trabalham fora dela.

O interessante ao ouvir as experiências das painelistas foi reforçar a minha visão de que se trata não apenas do machismo e racismo estruturais e institucionais que operam nas empresas, mas como os relatos e as histórias partilhadas no painel são exatamente os mesmos, tratando-se de um desafio transnacional nas organizações.

Trago aqui algumas conclusões principais deste estudo:

  • A falta de aconselhamento profissional foi percebida como uma barreira à entrada na tecnologia, em especial para as mulheres fora do setor, mas que apresentam qualificações STEM, onde 53% delas concordaram que não sabiam como conseguir uma função tecnológica ou entrar na área e 32% acreditavam que havia um requisito de diploma universitário para trabalhar em funções de tecnologia;

  • Os estereótipos de gênero e racializados são uma barreira à entrada das mulheres na tecnologia, mas os recursos, o apoio e o incentivo podem ajudar a reverter esse quadro. Em outras palavras, quando jovens, explorar e brincar com a tecnologia, juntamente com o apoio e os recursos da família e de outras pessoas à sua volta, serviram como inspiração e referência para mulheres jovens entrarem na área. Algo já constatado no livro Unlocking the Clubhouse: Women in Computing.

  • Muitas tinham experimentado processos de contratação justos para a sua função atual – mas isso diferia significativamente consoante à etnia e ao tamanho da organização. Àquelas que ingressaram em funções tecnológicas enfrentaram condescendência nas entrevistas, rejeições inexplicáveis e eram significativamente menos propensas do que as mulheres brancas a relatarem processos justos e imparciais na sua candidatura mais recente (57% vs 67%), enquanto 18% relataram sentir-se desconfortável em relação à sua etnia durante uma aplicação; 

  • As experiências de cultura em funções tecnológicas foram mistas, com mulheres negras e mulheres jovens no extremo mais acentuado da exclusão. No geral, 73% das mulheres e 75% dos homens que atualmente ou que trabalharam recentemente em funções tecnológicas concordaram que se sentiam confortáveis com a cultura do seu local de trabalho. No entanto, de forma mais detalhada, as mulheres negras, com deficiência e as mulheres lésbicas e bissexuais foram significativamente menos propensas a concordar. Além disso, 72% das mulheres negras sofreram pelo menos uma forma de racismo, 72% das mulheres em geral relataram ter experimentado pelo menos uma forma de sexismo e 73% das mulheres com deficiência experimentaram sua capacidade sendo testada em funções tecnológicas;

  • As iniciativas de diversidade, equidade e inclusão no local de trabalho, embora por vezes promovam progressos reais, também podem ser percebidas como performativas quando não combinadas com ações concretas;

  • As mulheres entrevistadas deixaram funções tecnológicas devido à recusa de pedidos de trabalho flexíveis e de meio período, à falta de investimento em suas habilidades, a uma cultura tóxica ou ao desejo de passar mais tempo com a família. Durante a pesquisa, nos últimos 12 meses, 43% das mulheres e 42% dos homens consideraram deixar suas funções tecnológicas semanalmente ou com mais frequência. As pessoas que possuem responsabilidades de cuidado tiveram uma probabilidade significativamente maior de terem considerado sair semanalmente ou mais, tal como o eram as mulheres jovens com menos de 24 anos (57%), as mulheres bissexuais e lésbicas (51%) e as mulheres com deficiência (59%).

O estudo traz, ainda, recomendações robustas de como as empresas, escolas e governos podem atuar para efetivamente eliminar o gap de gênero no setor de tecnologia. Nesse artigo vou me concentrar, em especial, nas principais recomendações levantadas para as organizações e no qual acredito serem extremamente pertinentes:

1. Reduzindo o preconceito no processo de seleção:
Mulheres negras, com deficiência, lésbicas e bissexuais relataram experiências desafiadoras de candidaturas a empregos, mostrando a necessidade de uma forte estratégia de recrutamento anti-racista como um elemento central para combater a sub-representação de mulheres em cargos de tecnologia. Assim como, relataram a necessidade de anúncios que precisam atrair as mulheres, sinalizando a disponibilidade de trabalho flexível, o uso da linguagem neutra de gênero e encorajando grupos sub-representados a se candidatarem.

As empresas devem adaptar os anúncios de emprego para:

  • Anunciar todos os arranjos de trabalho flexíveis disponíveis para as pessoas candidatas, como horários flexíveis, horários reduzidos, trabalho remoto ou trabalho de meio período – tendo a flexibilidade como padrão. Isto transfere a responsabilidade de quem se candidata de ter que fazer os pedidos (o que pode prejudicar a sua candidatura) e transfere para os empregadores a responsabilidade de considerar o que é possível no seu local de trabalho;

  • Destacar as políticas organizacionais relacionadas à licença parental;

  • Sempre incluir salário; 

  • Estabelecer apenas critérios pessoais essenciais e incentivar candidaturas de indivíduos, mesmo que não cumpram todos os critérios, especialmente requisitos de graduação que podem ser substituídos por experiência profissional equivalente. 

  • Utilização de comunicação inclusiva nas postagens das vagas e remoção da linguagem preconceituosa de gênero em anúncios de emprego;

  • Não fazer perguntas sobre o histórico salarial em nenhum momento durante o processo de candidatura ou negociação, pois isso perpetua disparidades salariais por gênero e etnia; 

  • Explicar antecipadamente o que é exigido dos candidatos, por exemplo, fornecendo perguntas da entrevista ou detalhes das avaliações; 

  • Remover nomes dos currículos durante a seleção; 

  • Estabelecer parcerias com organizações externas para facilitar o recrutamento inclusivo fora das redes existentes.

2. Combater os estereótipos e ampliar o acesso à tecnologia:
As empresas tem um papel fundamental no combate à discriminação de gênero, assim como, tornar acessíveis os tipos de funções tecnológicas disponíveis e oportunidades para aprender habilidades adquiridas desde cedo. 

As empresas devem:

• Expandir e apoiar programas que ensinam competências tecnológicas para pessoas de todas as idades – especialmente mulheres, pessoas negras e minorias – incluindo programas de retorno de STEM para quem muda de carreira ou para aquelas pessoas que regressam à tecnologia após licença parental ou um período de ausência;

• Expandir e apoiar programas que oferecem informações e aconselhamento sobre carreiras para pessoas de todas as idades para ampliar a compreensão da ampla gama de setores e tipos de funções dentro da tecnologia;

• Acabar com mitos sobre rotas de entrada estreitas e requisitos de qualificação para funções tecnológicas;

• Combater os estereótipos raciais e de gênero em torno de quem é capaz e está interessado no trabalho tecnológico.

3. Promover uma cultura social inclusiva:
Muitas vezes as iniciativas de diversidade, equidade e inclusão possuem caráter performativo e não levam a transformações mais substanciais e sustentáveis. É crucial que a alta liderança esteja 100% comprometida com uma mudança efetiva e, assim, propiciar por meio de políticas, programas e processos ambientes mais saudáveis e antirracistas às mulheres.  

Os empregadores devem:

• Desenvolver um plano de ação anti-racista e anti-misógino por meio de ações mensuráveis que sejam: a) reportadas ao nível superior e b) refletidas nas avaliações de desempenho dos gestores;

• Comunicar claramente os valores das organizações, estabelecendo expectativas claras relativamente a comportamentos aceitáveis e inaceitáveis, e promover a compreensão, através de comunicações, de como é o racismo e a misoginia no local de trabalho;

• Ter um mecanismo de denúncia claro e transparente para queixas e assédio, incluindo racismo e misoginia, e garantir que os resultados sejam obtidos da forma mais independente possível, com consideração cuidadosa dos efeitos das hierarquias e dinâmicas de poder dentro da organização;

• Recolher dados sobre experiências de racismo e misoginia no local de trabalho, incluindo a monitorização de queixas e se estas são confirmadas, por gênero e etnia. Seguir com planos de ação para resolver quaisquer desigualdades;

• Realizar entrevistas de saída quando os funcionários deixam as suas funções, especialmente mulheres, pessoas negras e de grupos minorizados, e utilizar estes dados para identificar e resolver quaisquer questões organizacionais. 

• Reconhecer o impacto do racismo e da misoginia no local de trabalho na saúde física e mental e fornecer apoio aos funcionários informados sobre traumas.

4) Normalização e expansão do trabalho flexível, trabalho de meio período e da licença parental
A capacidade de escolher como e quando trabalhar é de extrema importância na exploração da possibilidade de ingressar na tecnologia, enquanto a falta de flexibilidade significou para as mulheres entrevistadas que algumas foram forçadas a abandonar as funções tecnológicas de que desfrutavam, especialmente depois de se tornarem mães. Para recrutar e reter mais mulheres, é fundamental que sejam disponibilizadas opções de trabalho flexíveis e de meio período, mas que, além disso, sejam normalizadas para pessoas, independentemente do gênero, nas culturas do local de trabalho, especialmente pela liderança.

Os empregadores devem:

• Garantir que o trabalho flexível se torne a prática de trabalho padrão, incorporando-o na política organizacional – para incluir opções como horários reduzidos, partilha de trabalho e horários flexíveis, além do trabalho remoto (sem dias de expediente obrigatórios). Como dito acima, certifique-se de que essas opções sejam anunciadas nas descrições de cargos;

• Garantir que processos claros, justos e transparentes para solicitações de trabalho flexíveis e de meio período sejam incorporados em toda a política organizacional, com decisões que não sejam da responsabilidade de gerentes individuais;

• Monitorar os resultados dos pedidos de trabalho flexíveis por gênero, etnia e paternidade. Seguir com planos de ação para abordar quaisquer desigualdades nos resultados;

• Normalizar padrões de trabalho flexíveis e de meio período através do estabelecimento de exemplos entre os líderes seniores e garantindo que todos os funcionários sejam informados sobre as opções disponíveis.

• Incentivar, em particular, os homens a gozarem da licença de paternidade através de exemplos entre os líderes seniores;

• Garantir que as opções de trabalho flexível e de meio período sejam discutidas com homens e mulheres após o regresso da licença parental, sem suposições de gênero sobre mulheres ou homens decidirem alterar ou não o seu padrão de trabalho.

5. Fornecer treinamento, remuneração e progressão equitativos
Disparidades salariais entre mulheres e homens na mesma função, assim como acesso desigual a apoio, formação e falta de transparência salarial e clareza sobre os critérios de promoção são alguns dos desafios enfrentados pelas mulheres nas organizações.

Os empregadores devem:

• Aumentar o acesso à formação, especialmente para os funcionários juniores, e garantir que esta faz parte de um plano de formação abrangente e contínuo;

• Aumentar as oportunidades de acesso para mulheres e grupos sub-representados, por exemplo, através de estágios e outros cargos de formação assalariados;

• Garantir a transparência salarial através da documentação dos níveis salariais;  

• Implementar uma auditoria de salários e bônus para determinar se os salários e bônus são justos entre os funcionários por gênero e etnia;

• Garantir clareza nos critérios de promoção, documentando isso e informando os funcionários, com processos de candidatura transparentes e justos para redução do preconceito; 

• Garantir consistência e clareza nas formas como os bônus são concedidos em toda a organização, documentando isso e informando as pessoas colaboradoras;

• Recolher dados, reportar e publicar disparidades salariais de origem étnica e de gênero, e associar isto a um plano de acão para abordar as disparidades com responsabilização incorporada.

Não tenho dúvidas que se as lideranças dedicarem tempo, atenção e recursos para esse plano de ação teríamos mudanças substanciais e uma redução do gap de gênero no setor de tecnologia. Mas para isso ser possível, o desenvolvimento de uma cultura inclusiva e saudável deve ser tratada como inegociável pela alta liderança. Intencionalidade é tudo.


*Carine Roos é mestre em Gênero pela London School of Economics and Political Science - LSE. Também é pós-graduada pelo Santa Barbara Institute for Consciousness Studies (Califórnia/EUA) em Cultivando Equilíbrio Emocional nas organizações e atua como especialista em Diversidade, Equidade e Inclusão há 10 anos. Lidera a Newa, empresa de impacto social que prepara organizações para um futuro mais inclusivo por meio de sensibilizações, workshops, treinamentos e consultoria de diversidade.


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