04/09/2023 às 23h50min - Atualizada em 13/09/2023 às 23h50min

Domingo no Parque

Do Cafofo do Dezena: Crônica Viva

Para a crônica da semana, fiz um projeto diferente. O enredo depois do desenho. Esse, aí em cima. O que significa? Não faço ideia, além da figura autoexplicativa. Nascerá ficcional, sei, embora goste delas fincadas na realidade, em fatos corriqueiros da semana. Mesmo as crônicas memorialistas, cobradas por leitores, não me apetecem.
Assim caminhamos. Posso lhes contar um fato ocorrido há alguns anos no parque da Mooca? Todos os bairros, creio, têm seu parque. No futuro, o Bixiga, pela luta incansável de Martinez Correa. Acontece que a Roberta, aquela mulher ao fundo com o cachorro, amiga à época, trabalhava na Celso Garcia, próximo ao imponente templo de Salomão, segredou-me, do nada, paixão por Arnaldo. Mesmo o sabendo bem mais velho, viciado em jogos por computadores e com uma calva avançada. Conhecendo bem o Arnaldo, talvez o motivo de ter vindo a mim, a aconselhei desistir da empreitada. Além do jogo, tinha outros terríveis vícios e não seria o nome adequado para ela. A roda de amigos sabia dos seus incontáveis débitos junto aos mais próximos. Quando aparecia com algum dinheiro, vinha da bolsa de uma viúva, que fingia cuidar, ou pelo proxenetismo.
- Talvez não seja o melhor para você - aconselhei, sem dizer o que mais dele sabia.
Ela fora ao parque por ouvir dizer que o Arnaldo passava horas em seu computador jogando e apostando sob as árvores. Após anos sem contato, a encontrei na Estação Mooca do metrô, plataforma de embarque para a cidade, com o mesmo olhar imarcescível e duas crianças. Uma no colo, não mais que dois anos, e a outra agarrada a sua saia, talvez quatro. Ao me cumprimentar com a timidez de uma ex-amiga, procurei nas feições dos rebentos o rosto do Arnaldo. Disse-me que estava muito bem e feliz, casara-se com o Tininho, que o conhecera naquele mesmo dia no parque. Ele ganhava a vida como pipoqueiro e estava expandindo os negócios. Segredou-me que a cada filha aumentariam o número de carrinhos pelas ruas. Planejavam cinco. Ela sonhava com as meninas formadas.
Tempos depois deste encontro, próximo ao cemitério da Quarta Parada, o corpo do Arnaldo foi encontrado furado pelas balas de credores, diziam uns, ou dos filhos da viúva, gritavam outros. Quem sabe? Não se sabe. Mas senti a felicidade no estouro da pipoca.

Fernando Dezena é escritor. Membro da Academia de Letras de São João da Boa Vista, Diretor da UBE – União Brasileira de Escritores e Curador Literário do Espaço Cultural da Boca do Leão

Link
Notícias Relacionadas »
Comentários »
Fale pelo Whatsapp
Atendimento
Precisa de ajuda? fale conosco pelo Whatsapp