25/07/2023 às 14h23min - Atualizada em 28/07/2023 às 02h01min

Boom do etanol de milho no Brasil pode representar menos áreas de produção de alimentos e mais desmatamento no Cerrado

Impulsionado pelo mercado financeiro, setor cresceu 800% em cinco anos. Pressão sobre terras, uso de água, emissões e danos a povos tradicionais ficam fora do cálculo sobre sustentabilidade

Assessoria de Imprensa

Anelize Moreira, especial para o Joio

Os biocombustíveis estão no centro do debate sobre mudanças climáticas, apontados como alternativas sustentáveis à matriz energética dos combustíveis fósseis, altamente poluentes.
A produção do etanol no Brasil é oriunda majoritariamente da cana-de-açúcar, mas, com a proibição do plantio de cana na Amazônia, a bola da vez do agronegócio é o etanol à base de milho. São estimados seis bilhões de litros de etanol de milho na safra 2023/2024, o que representa 19% de todo o etanol consumido no Brasil, segundo a União Nacional do Etanol de Milho (Unem).

Para se ter uma ideia, a produção do etanol à base de milho nos últimos cinco anos aumentou em 800% no país, passando de 520 milhões de litros, na safra 2017/18, para 4,5 bilhões na safra 2022/23, de acordo com dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Com o aumento da produção de milho de segunda safra em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, várias novas usinas foram abertas ou estão em construção no Cerrado.

Uma das vantagens apontadas pelo setor é a eficiência energética e a menor emissão de carbono. Porém, o milho pode não ser a salvação da lavoura climática. São inúmeros os impactos socioambientais que podem ocorrer na cadeia de produção do etanol de milho: aberturas de novas áreas, desmatamento, contaminação das águas e do solo, redução de áreas de produção de alimentos e ameaças aos modos de vida de povos tradicionais. Entre outros.

Desde 2021, os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), da ONU, alertam sobre o risco de substituir áreas de florestas por monoculturas de milho e que o aumento no uso de biocombustíveis “colocará pressão significativa sobre o uso da terra e ecossistemas”.

“Todos os graus de degradação ambiental são importantes. Não é apenas a questão da emissão de carbono que se dá no final. Se você derruba a mata está impactando o processo de emissão de carbono. Quando faz queimada e agride o solo, também. Ou as comunidades que moram no entorno se sentem compelidas a sair do seu território tradicional, tudo isso também é importante, porque são impactos que acontecem ao longo de toda a cadeia produtiva”, explica Marcia Montanari, pesquisadora do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador. Da Universidade Federal do Mato Grosso.

Rápida expansão

A primeira produção de etanol de milho se deu em 2012 pela Usimat, na entressafra da cana-de-açúcar, em Campos de Júlio (MT). Porém, foi só cinco anos depois que o país teve a primeira usina de etanol processando exclusivamente etanol à base de milho. A pioneira foi a FS Bioenergia, que se instalou em Lucas do Rio Verde. Hoje possui unidades em Sorriso e Primavera do Leste, todas em Mato Grosso. De lá pra cá o mercado se tornou promissor, e as empresas entraram na corrida em busca de certificações verdes, promessas de descarbonização e melhor posicionamento no mercado.

 

Unidade da Inpasa, em Dourados. Foto: Divulgação/Inpasa

Ao todo, o país tem 18 usinas de etanol de milho em operação. Dessas, 16 estão na região Centro-Oeste, sendo 10 no Mato Grosso, segundo levantamento da União Nacional do Etanol de Milho. Outras nove usinas estão em processo de construção ou em fase de ampliação no estado. Mas essa expansão está ocorrendo em áreas historicamente desmatadas. Um exemplo é a usina ALD, que opera desde 2021 em Nova Marilândia (MT), que está entre as dez cidades com maior desmatamento neste ano no estado, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). A reportagem solicitou dados à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), mas não houve resposta até o fechamento da reportagem. Solicitamos informações sobre infrações ambientais para a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), mas também não tivemos retorno.  

 

Nos últimos seis anos foram investidos mais de R$ 15 bilhões no parque industrial de etanol de milho em usinas flex e full, segundo a Unem. Essa expansão do etanol de milho conta com apoio do governo dos estados e federal, e é um dos focos do recente boom de instrumentos do mercado financeiro disponíveis para o financiamento do agronegócio.  

A Rio Amambai Agroenergia quer captar R$320 milhões para expandir a atuação em Mato Grosso do Sul. Boa parte dos recursos deve vir do fundo de investimento do agronegócio da Kinea.  

Já a XP Investimentos tem no aporte da FS Bioenergia um dos principais ativos de seu maior fundo do agronegócio. Os levantamentos do banco registram a expectativa de abrir mais três usinas e quase quadruplicar a produção. O otimismo com o setor é tanto que já existe um fundo de investimento de agronegócio com foco em etanol. O FGAA11, da FG/A Gestora de recursos, já está entre os maiores do setor, com patrimônio de quase R$ 400 milhões. O fundo faz uma aposta em atrair pequenos investidores: cada cota custa menos de R$10, e no total já foram comercializadas 34 milhões de cotas.  

Mas, como se sabe, o agro vive de dinheiro público. Em suas primeiras operações este ano, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) liberou o financiamento de R$ 100 milhões para a produtora de etanol de milho FS Bioenergia no Mato Grosso e R$ 40 milhões para a Alcoeste, empresa sucroenergética de Fernandópolis (SP). Desde 2021, quando foi criado, o Programa BNDES RenovaBio possui uma carteira de 12 operações e mais de R$ 1 bilhão em financiamentos. Os apoios financeiros do banco nessa linha estão inseridos na Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), do Ministério de Minas e Energia (MME).  

Em tese, o crédito financeiro é oferecido para empresas alinhadas com as práticas de ESG do mercado (Ambiental, Social e Governança). Ao todo, as unidades apoiadas pelo programa do governo deverão ofertar créditos equivalentes a 400 mil toneladas de carbono evitadas por ano.  

O Brasil é o terceiro maior produtor mundial de milho, atrás só dos Estados Unidos e da China. O milho para etanol é plantado no período da segunda safra, que ocorre entre janeiro e abril, após o cultivo da soja e também como complemento para a produção da cana-de-açúcar na entressafra. As lavouras de milho no Cerrado são cultivadas principalmente para servir de base para a alimentação de frangos, porcos e outros animais, que estão entre os principais setores que colaboram para o desmatamento no Brasil. De acordo com a área técnica da Conab, o consumo interno de milho usado para ração animal fica em 63,5%. Porém, a essa altura o etanol já consome 14% da produção, ou seja, a manter as perspectivas de crescimento, o combustível de fato competirá pelos grãos. Apenas 22,5% são usados em consumo industrial, consumo humano e perdas.  

 

É verdade que o milho produz mais etanol do que a cana, mas o grão demanda maior área de plantio. Quer dizer, o Brasil quer apostar no milho como biocombustível, mas para isso terá de expandir. Segundo a Conab, uma tonelada de cana-de-açúcar produz entre 70 e 90 litros de etanol, enquanto uma tonelada de milho pode produzir até 420 litros de etanol. Porém, quando se avalia a produtividade versus área plantada, a cana produz mais de 6 mil litros por hectare, enquanto o milho produz cerca de 2,5 mil litros de etanol. A área plantada de milho de segunda safra tem crescido de forma vertiginosa. Nos últimos dez anos a área plantada mais que dobrou: passou de 8,7 milhões de hectares em 2013 para 16,5 milhões em 2023, segundo dados do IBGE.  

Marcia Montanari estuda há 20 anos o avanço das fronteiras agrícolas e os impactos socioambientais das monoculturas. Ela faz parte do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador, referência nacional no assunto.  

“Observamos um aumento das áreas de produção de commodities agrícolas e uma redução gradativa de área plantada de arroz, de feijão e outras culturas alimentares. Para ter ideia, aqui [Mato Grosso] tem regiões que utilizam de 95 a 98% do seu território agricultável para a produção de soja, milho, cana e algodão. Resta pouca área disponível para produção de arroz, feijão, tubérculos, vegetais e frutas”, afirma. “O estado tem essa característica de cortar áreas destinadas ao cultivo de alimentos e tudo que vem para nossa mesa vem de fora. De São Paulo, Goiás, Rondônia, Paraná.”  

Não por acaso, o Mato Grosso é o estado com o maior número de municípios em vulnerabilidade e insegurança alimentar em eventos climáticos – ao todo são 24 cidades, de acordo com os dados do Sistema de Informações e Análises sobre Impactos das Mudanças Climáticas (Adapta Brasil), instituído pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e divulgado em abril deste ano. No Centro-Oeste do país, os milharais se estendem até perder de vista. A produção de milho para etanol se concentra em grande parte em estados pioneiros na produção de commodities: Mato Grosso (75%), Mato Grosso do Sul (16%) e Goiás (9%).  

Mateus Batistella, pesquisador da Embrapa Agricultura Digital e professor da Unicamp, pondera que, apesar da produtividade e das áreas de produção do milho de segunda safra aumentarem no Mato Grosso, houve diversificação de commodities e intensificação na cadeia produtiva.  

“É importante não demonizar o produto. O problema não é o etanol de milho em si. O problema é o modelo expansionista de desenvolvimento da agropecuária no Brasil, mas isso tem melhorado e ocorrido processos de conversão da terra: produzimos mais em menos área.”  

As corporações do setor argumentam que o milho utilizado em suas usinas não terá impacto ambiental negativo, justamente por ser produzido em terras onde já é cultivada soja. Essa aura verde se transforma em dinheiro na forma de investimentos, inclusive financiados pelo BNDES, para uma suposta migração a uma economia de baixo carbono.  

Porém, o crescimento pode estimular o avanço das lavouras para áreas de vegetação nativa que possuem uma importância pelos serviços ecossistêmicos prestados, inclusive como não emissor de carbono: onde há floresta em pé, há redução de emissão de carbono na atmosfera.  

Mesmo que produzido em áreas já desmatadas, o milho para as usinas é cultivado em um sistema de monocultura, modelo que não representa uma ação efetiva de mitigação ou de adaptação às mudanças climáticas. “Precisamos superar o petróleo e buscar novas alternativas de produção de energia. Ao mesmo tempo que a gente entende que esse modelo de produção que utiliza extensas áreas de produção vai degradando o solo, os lençóis freáticos, vai degradando o ecossistema”, diz Montanari.  

Existem inúmeros estudos nessas áreas de expansão agrícola feitos pelo núcleo da Universidade Federal do Mato Grosso. Em um deles, foram analisados dados de área plantada de 21 culturas e os indicadores de consumo de agrotóxicos por hectare para cada cultura e agravos à saúde. Constatou-se o predomínio dos cultivos de soja, milho e cana.  

“Temos uma estimativa de que são aplicados sete a nove litros de agrotóxicos por hectare produzido durante todo o ciclo”, afirma Márcia. O Cerrado está passando por um processo semelhante de perda de biodiversidade e vegetação ao que ocorreu na Mata Atlântica. Quase metade do bioma já foi destruído, substituído pelo cultivo extensivo de commodities agrícolas, principalmente soja, milho, cana-de-açúcar e algodão, ou usado para extração de matérias-primas voltadas à produção industrial.  

Os últimos dados de desmatamento no Cerrado são de crescimento de 32% em 2022, segundo o MapBiomas. Foto: Joel Silva

Em 2020, Mateus Batistella fez parte de uma pesquisa que concluiu que as mudanças climáticas podem afetar em até 10% o plantio de milho segunda safra no Brasil até 2035. O estudo de âmbito internacional foi liderado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp. Os riscos apontados no levantamento indicam a necessidade de ações de governança regional.  

“O que deve ser levado em conta pelo agro, pela ciência, pelo Brasil é o tamanho do risco em expandir esse tipo de agricultura para áreas onde os eventos climáticos podem ser extremos em momentos importantes da produção. Existem estudos mostrando as áreas de Matopiba, por exemplo, menos propícias para desenvolver esse tipo de agricultura intensificada”, enfatiza Batistella.  

Desde 2009, o plantio de cana-de-açúcar na Amazônia e no Pantanal foi proibido. Após dez anos, Jair Bolsonaro revogou o decreto, logo suspenso pela Justiça Federal.  

“Hoje conseguimos desmatar 50% do Cerrado, quanto mais a gente quer desmatar? Queremos chegar à Mata Atlântica, que tem 12%, ou queremos ser uma Amazônia, que tem 80% de cobertura? Essas perguntas devem ser feitas. E também em relação à sustentabilidade dos sistemas produtivos e os serviços ecossistêmicos, O cerrado é o berço das águas e realmente precisa de uma política muito robusta”, reforça Mateus Batistella.  

Montanari, da UFMT, explica que a expansão das lavouras agrícolas de milho tem ocasionado uma espécie de “ilhamento” de pequenos agricultores, assentados da reforma agrária, indígenas e quilombolas.  

“Tem populações que são muito mais expostas e estamos falando de justiça social e de racismo ambiental. O grau de exposição das populações tradicionais aqui no nosso estado é muito maior nos municípios do agronegócio. Dentro de uma cidade que tem lavouras por todos os lados, quem mora mais na periferia geralmente são os trabalhadores menos remunerados, que são as pessoas negras e indígenas.”  

Política agrícola  

Em março deste ano, o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, se reuniu com a União Nacional do Etanol do Milho (Unem), principal entidade que representa o setor, e avaliou que os números positivos da safra 2022/2023 “caminham no sentido da sustentabilidade e da geração de empregos”.  

“Essa questão da descarbonização veio para ficar. O problema é que ela demora, porque o passivo que nós temos de carbonização desse nosso modelo de desenvolvimento é muito grande”, diz o pesquisador da Unicamp.  

O estudo “Potencial de Produção Sustentável de Biocombustíveis no Brasil – 2030“, do WWF-Brasil, calculou que, considerando a área utilizada pela agropecuária entre 2014 e 2030, estariam disponíveis para a expansão dos biocombustíveis cerca de 25 milhões de hectares. Uma das conclusões é que o potencial de oferta não é suficiente para suprir toda a demanda de combustíveis fósseis prevista para 2030. Nos cenários analisados, mesmo priorizando a produção de etanol e biodiesel, não seria possível lidar com a demanda total da frota brasileira de veículos rodoviários.


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