07/06/2023 às 00h45min - Atualizada em 07/06/2023 às 00h45min

Premonições

DO CAFOFO DO DEZENA: CRÔNICA VIVA

Madrugadinha ainda, escuro de outono, olhei pela janela. No prédio vizinho, que não é tão vizinho assim, uma mulher nua varria a sala. Engano, não estava nua, vestido cor da pele, e ao fundo um homem a ajudava a colocar as coisas no lugar. Pensei: provavelmente uma festa que terminara há instantes e estavam deixando tudo limpo antes de se recolherem. Ou teriam de sair apressados e, madrugada ainda, queriam deixar as coisas no lugar?

Roupa de caminhada, blusa azul Nike de mangas compridas, oriunda das calçadas do Brás, para enfrentar o friozinho, saí, após buscar o desjejum, em disparada pelas ruas da Mooca. Ao ganhar a Conde Prates, logo após o supermercado Yamauchi, um novo susto. Despencou a água de um balde sobre o toldo do bar que fica do lado esquerdo de quem sobe a rua. A senhora recolheu rapidamente o instrumento de trabalho e saiu da janela. Passou-me num átimo: por que não jogou no tanque, de onde viria a água, e se houvesse alguém na calçada, ou sob o toldo? O susto seria fatal. Lembrei-me dos cômodos sem ralos. Devemos torcer os panos, após passá-lo no chão para sugar a água, e, geralmente, a jogamos dentro de baldes. Lógico! Pelo caminho mais curto, se desfez da água.

Três quilômetros à frente, do telhado da garagem de um sobrado, desses que ainda restam pelo bairro, a água branca caía farta, como em tempestades, e, mais à frente, em outra rua, e noutro sobrado, a água saía em enxurrada ao lado do portão: provavelmente estariam lavando o quintal.
Quatro eventos de pessoas limpando antes das sete da manhã me pareceu estranho. Seria um aviso do sobrenatural? Deveria ficar longe das vassouras e rodos, dos detergentes, espanadores e afins? 

Quando subi a Paes de Barros, ao final dos dez quilômetros, uma senhora varria a calçada com esmero. Pelo uniforme, trabalhava em uma dessas firmas de limpeza que pagam uma miséria, muito exigem, e quebram financeiramente deixando um rastro de prejuízos. Vi um bom apartamento nesse edifício para comprar. Desisti devido aos cupins.

Já em meu prédio, subindo o elevador de serviços, torci para que a Luciane ainda dormisse. Acontece que as mulheres não podem nos ver à toa. Entrei silenciosamente, na ponta dos pés, mas ela já estava desperta.  

— Aproveita que está com essa roupa e faça uma faxina no Cafofo. Está uma bagunça! 

Assustei-me. Recusei, gritei, neguei peremptoriamente: 

— Jamais, nunca, hoje não, faço outro dia! Pelo amor de Deus! Algo de muito grave pode me acontecer. 

Fernando Dezena é escritor. Membro da Academia de Letras de São João da Boa Vista, Diretor da UBE – União Brasileira de Escritores e Curador Literário do Espaço Cultural da Boca do Leão

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