25/04/2023 às 10h10min - Atualizada em 26/04/2023 às 00h00min

Frutas: privatização de territórios irrigados no NE expulsa pequenos agricultores

Infraestrutura pública atende majoritariamente agronegócio exportador; comunidades locais se organizam contra implantação e expansão

SALA DA NOTÍCIA Assessoria de Imprensa

Por Maíra Mathias, com colaboração de Mariana Costa, enviadas ao Ceará e ao Rio Grande do Norte

Os projetos públicos de irrigação -- no jargão oficial, PPIs -- começaram a tomar forma no fim da década de 1960, em plena ditadura. A ideia era que na Caatinga, onde a natureza sempre ditou quando e o que se plantava, se estabelecesse um novo tipo de produção agrícola, considerado moderno pelos militares.

 

Um dos canais do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi, que tem o canal principal hoje ocupado pelo MST. Foto: Raquel Torres

 

No discurso, as comunidades acostumadas a plantar frutas e verduras no “inverno” -- como chamam o período de chuvas que vai de janeiro a junho --, e mandioca e milho no “sequeiro” do restante do ano, se veriam livres das amarras do clima. Na prática, descobriram que a água não era para elas.

 

Osarina nos mostra a horta comunitária, onde além de cultivarem PANCs as mulheres resgatam saberes tradicionais sobre plantas medicinais. Foto: Raquel Torres

 

Depois do almoço, Dino Gomes da Costa, 55 anos, liderança histórica de outra dessas comunidades, Lagoa dos Cavalos, se soma à conversa. Depois de aceitar um cafezinho e comentar por alto as chances de alguns candidatos locais -- estávamos a menos de um mês do primeiro turno das eleições de 2022 -- ele sentou em uma daquelas tradicionais cadeiras de fio. Em pouco mais de uma hora, na luminosa sala de Osarina, eles tentam resumir anos de sufoco.

 

Dino estava na reunião-cilada organizada pelo DNOCS para informar oito comunidades da iminente desapropriação. Foto: Raquel Torres

 

O ímpeto das comunidades foi barrar. Afinal, em 2008, apenas 23% da primeira etapa do perímetro estavam ocupados -- fato que também levou o Ministério Público Federal a questionar a expansão.

Essas comunidades, assim como outras da região, começaram a se formar na década de 1930. A maior parte do tempo, viviam da criação de pequenos animais e da agricultura de subsistência. Mas, desde os anos 90, passavam por um processo de transição agroecológica, com produção de alimentos sem agrotóxicos e criação de abelhas -- iniciativas que coincidiram com a chegada das primeiras políticas públicas, como a implantação de cisternas para captação de água da chuva.

A casa de farinha de Lagoa dos Cavalos foi inaugurada em 1998 -- um dos investimentos públicos que não foram levados em conta pelo EIA. Crédito: Raquel Torres

 

Mas, segundo o estudo de impacto ambiental (EIA) feito para avaliar a expansão do perímetro irrigado, nada disso existia.

Durante o almoço e a conversa com Dino e Osarina havia uma terceira pessoa: o pesquisador Diego Gadelha. Além de ser fã de rapadura, ele é coordenador do Observatório da Questão Hídrica -- um projeto de extensão vinculado ao campus de Fortaleza do Instituto Federal do Ceará (IFCE). O problema da distribuição desigual das águas no semiárido nordestino é o seu assunto e, por isso, mesmo antes da viagem, nós já vínhamos nos correspondendo.

Na década de 1980, organismos internacionais como o Banco Mundial começariam a recomendar que as empresas se tornassem o público prioritário dos projetos públicos de irrigação -- fechando o ciclo do agronegócio.

Dirigir na região é um desafio. O celular não pega na maior parte do tempo e é comum não avistar viva-alma para pedir informações quilômetros a fio. Depois de irmos parar, literalmente, no meio do mato, num local difícil até de manobrar o carro, chegamos ao acampamento Zé Maria do Tomé, uma ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no coração do agronegócio cearense.

 

Em 2014, o MST ocupou o canal principal do Perímetro Jaguaribe-Apodi, considerado por muitos o “coração do agronegócio cearense”. Crédito: Raquel Torres

 

Sem perder tempo, fomos ao encontro de José Evandro Sousa Silva. Dolero -- como é conhecido -- tem 39 anos e trabalhou nas principais empresas de exportação de frutas que orbitam o Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi. Agrícola Famosa. Del Monte. Frutacor. Durante 19 anos, sua realidade foi a mesma da maior parte dos trabalhadores com quem conversamos ao longo dessa apuração. Passou por diversas funções, sempre ganhando salário mínimo. Em nenhuma das empresas havia lugar pra esquentar a comida: era um bóia-fria.

 

Durante 19 anos, Dolero trabalhou para as principais empresas de frutas, mas em 2014 passou a produzir para si mesmo no acampamento Zé Maria do Tomé. Crédito: Raquel Torres

 

Jaguaribe-Apodi é o epicentro de um conflito fundiário que se arrasta desde o começo da década de 1990, quando empresas começaram a invadir áreas do perímetro que deveriam abrigar pequenos agricultores ou servir de reserva ambiental.

O caso mais emblemático é o da Del Monte, uma das três maiores empresas do ramo da fruticultura no mundo. Segundo um relatório do DNOCS feito em 2009 por exigência da Justiça, a transnacional era a maior invasora do perímetro, tendo abocanhado uma área de mais de 1,2 mil hectares. A Banesa, empresa nacional especializada em bananas, vinha em segundo lugar, com 356 hectares.

Apodi fica a 70 quilômetros do acampamento. Por lá, além de todos esses exemplos negativos do passado, os agricultores olham para um futuro absolutamente incerto, com a possível privatização do Perímetro Irrigado Santa Cruz de Apodi.

 

Trabalhadores rurais se reúnem em pleno sábado no sindicato para debater possível retomada de construção do perímetro irrigado que eles chamam “Projeto da Morte”. Crédito: Raquel Torres

 

Para entender o que isso pode significar, basta olhar para Baixio do Irecê, na Bahia -- maior projeto de irrigação da América Latina e abre-alas desse modelo de concessões ao setor privado. O leilão aconteceu em junho de 2022.


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