24/06/2014 às 12h55min - Atualizada em 24/06/2014 às 12h55min

Mayara

-

Isabela Gomes

               Nasceu no inverno, porém só abriu os olhos quando desabrochou a primeira flor na primavera. Mayara, nomeada assim em homenagem à sua bisavó, viveu bela infância, rápida adolescência e no dia em que completou 18 primaveras, foi ter com seu pai. Agora que possuía a idade certa, deveria começar a aprender as "magias" de sua tribo e se casar. Casar ela não quis não, disse que nenhum guerreiro da tribo lhe despertava interesse. Todos prepotentes e arrogantes. Muitos queriam várias mulheres, outros as agrediam... Mas começar a treinar para ser futura curandeira ela queria sim. Imediatamente!
               Dedicou todos os seus dias às ervas, raízes, flores e frutos. Aprendeu de tudo: quais eram boas, quais eram venenosas. Para que servia cada uma. Sua mãe, Iara passou todo o seu conhecimento para a filha, que teria o dever de levá-lo consigo para cuidar de sua tribo e, quando a filha de Mayara completasse 18 primaveras, deveria passar tudo para ela e, assim, continuar por gerações. O curandeiro da tribo era o que mais deveria ser protegido e, em caso de guerra, seria o primeiro a ser levado embora para um lugar seguro. Apenas aquela pessoa, aquele índio ou índia é que detinha os segredos. As sabedorias de como fazer cada remédio, o segredo de Jurema, cada veneno, só aquele índio sabia.
               A tribo Quaraciema entrou em guerra com a tribo Iúna naquele verão. Parece que um dos índios Quaraciema, da tribo de Mayara, atravessou para o território dos Iúna perseguindo um animal e aquele pequeno mal-entendido virou guerra! Os Iúna eram muito vingativos. Mayara foi tirada de lá às pressas. O guerreiro mais forte da tribo ficou encarregado de sua segurança. Como ela protestava por querer ficar com os pais para protegê-los, ele a levantou e a colocou no ombro, como se fosse um saco de grãos e a levou calmamente para um esconderijo. Mayara, vencida pelo cansaço de se debater no peito e nas costas rijas do guereiro, deu-se por vencida e parou de esbravejar quando já estavam chegando.

               Mayara podia ouvir os passos pesados, as flechas voando pelo céu, os gritos de guerra. Estavam em uma espécie de caverna coberta por folhas  de palmeira para camuflá-la. Ela estava sentada no chão abraçando os joelhos e o guerreiro, encostado na parede fria e úmida da caverna, parecia emburrado.
               - Qual seu nome, guerreiro?

               - Sou Guerreiro Apuana, o mais rápido desta tribo. Em vez de poder usar minhas habilidades na guerra, estou aqui!
               - Não é uma espécie de honra proteger a curandeira?
               - Quem precisa de curandeiros? Pensam que só por conhecer alguns nomes difíceis são superiores! Odeio o Pajé! Duvido que ele tenha poderes. Duvido até de Tupã!
               Mayara teve pena do guerreiro, mas logo se encolheu com medo. Se o guerreiro pensava assim, provavelmente não tinha intenção de protegê-la e dar sua vida por ela como a regra dizia. O barulho do lado de fora parecia ter cessado.
               - Curandeira fica. Vou ver se já podemos sair daqui. Precisamos ir até o Iguaçu pegar água.
               Ele saiu devagar, analisando cada movimento, porém, no segundo que colocou seus pés fora da caverna, uma flecha acertou-o no estômago. O guerreiro caiu  para trás com os olhos vidrados no teto da caverna. Mayara precisava ajudar, mas tinha medo de se mexer e atrair a atenção do inimigo. Com muita cautela aproximou-se  do guerreiro caído. Não tinha uma única raíz para ajudá-la! Não podia sair da caverna. Sabia que aquele guerreiro estava fadado à morte, tentou amenizar sua passagem.
               - Mesmo que não acredite, guerreiro, Tupã te espera. Diz a lenda que os índios viram uma estrela quando vão-se embora daqui.
               - Minha mãe virou estrela. É uma das Trê Marias. A do meio.
               - Vai e encontra tua  mãe, guerreiro. Obrigada por me proteger.
               - Curandeira Mayara, não saia daqui até o sol cair no horizonte. Quando isso acontecer, corra até o Iguaçu e tente se esconder em uma árvore...- o guerreiro começou a tossir.
               - Shhh... descansa. Me protejo sozinha. Faz silêncio que acho que escutei alguma coisa!
               E aqueles três segundos de silêncio duraram uma eternidade.
               Mayara segurou o berro na garganta quando viu um índio da tribo inimiga levantando as folhas que camuflavam a caverna. Aquelas penas amarelas, as pinturas no braço... era um Iúna! Nunca temeu nada na vida como temia este guerreiro agora. Era robusto, alto, levava consigo a cara fechada. Ela tentou segurar as lágrimas que teimavam em escorrer pelo seu rosto e cair  no rosto do Guerreiro Apuana que tinha sua cabeça apoiada nas pernas de Mayara. O guerreiro havia falecido sem muito sofrimento, porém Mayara continuava a segurá-lo como se o velasse. Em sinal de respeito, tentou manter na mente suas orações, mas o temor pelo guerreiro inimigo a impedia. Então o guerreiro da outra tribo disse:
               - Será que posso me esconder aqui também?
               Mayara, tomada pelo susto, fez que sim com a cabeça bem lentamente sem entender bem o que acontecia. Ainda atônita e com os olhos vidrados no guerreiro inimigo, ela foi um pouco para a esquerda, abrindo espaço para ele.
               - Não gosto dessa guerra.
               - Nem eu – Mayara disse engolindo seco
               - Eu nem queria ser guerreiro! Na minha tribo é uma tradição. Se o pai é guerreiro, o filho deve ser. É uma questão de honra. Mas eu não quero! Não quero caçar animais, não quero matar outros índios!
               - Nem eu – Mayara disse
               - Perdão. Não devia estar falando tudo isso... Sou Guerreiro Oriba.
               - Curandeira Mayara...
               - Você é a tão falada curandeira? Meus respeitos, Mayara. Que Tupã sempre abra seus caminhos, Rudá sempre te proteja! É sempre bem falada nas outras tribos: a curandeira que aprendeu mais rápido, que aprendeu mais. Dizem que és jovem mas leva a alma velha. É verdade?
               - Eu...hãm... Você é um guerreiro de outra tribo! Como pode ser bondoso comigo?
               - Todos os índios são índios. Se passássemos mais tempo dividindo as tarefas e vivendo em harmonia do que nos matando...seria produtivo. Aposto que Tupã se sentiria orgulhoso.
               - Não poderia concordar mais. – Mayara começava a perder o medo e a se aproximar do guerreiro da tribo inimiga.
               - Sabe? Deveríamos ir até o Iguaçu, o sol já estão deitando no horizonte. Logo a noite chega e traz o perigo.
               - Quer dizer... eu e você irmos ao Iguaçu?
               - Sim. Tem sede como eu, não tem?
               - Sim...
               E foram juntos ao Iguaçu. O corpo do guerreiro morto ficou na caverna em eterno repouso. Sua alma já havia sido levada a Tupã. Oribá ajudou Mayara a beber água, a pescar, a colher algumas frutas e juntos, sem perceber, dormiram debaixo de uma árvore contando as estrelas. Pela manhã, ainda dormiam abraçados quando ouviu-se o barulho da primeira flecha do segundo dia de guerra. Mayara e Oriba ogo se separaram, assustados. Ela sentiu-se envergonhada, mas logo deixou esse sentimento ir embora. Precisavam se esconder!
               Brotava ali, talvez mais rápido do que o normal em razão do medo, um sentimento de confiança nos dois índios. O amor vem depois, vem devagar quase parando. Quem ama bem sabe que o amor não chega fazendo estardalhaço, ele vem devagarinho, com jeitinho e quando se vê já está lá no coração com as malas desfeitas e dizendo que veio para ficar.
               Mayara e Oribá passaram tempo o suficiente juntos na floresta para o amor chegar. Por não poderem contar com mais ninguém, senão eles mesmos, as cores das penas foram esquecidas e logo tudo tornou-se belo. Desconfio até que por alguns momentos a guerra fora esquecida. Mas, que sei eu? Estou só contando a história. Mayara ensinava seus cultos para Oribá e ele ensinava suas táticas de sobrevivência a ela. Dormiam, acordavam, comiam... escondiam-se ao ouvirem o menor barulho. Mayara estava protegida e amava sem nem entender o que isso queria dizer.
               Depois de alguns dias escondidos na floresta, perceberam que tudo estava calmo demais.
               - Penso que a guerra acabou. Tenho um pensamento ruim, mas devo dizer. Queria que a guerra continuasse para que eu ficasse aqui, escondida com você.
                - E não podemos tentar continuar juntos na sua tribo? Os Quaraciema são conhecidos por serem pacíficos. Oribá parecia sempre ter as melhores soluções.

               Decididos, juntos foram para a oca do pai de Mayara. Quando ela chegou e viu que os pais estavam bem, apesar de alguns arranhões, deixou-se relaxar de verdade pela primeira vez em dias. Mayara disse ter uma surpresa. Os pais, antes felizes por verem que sua filha estava bem, entraram em pânico ao verem as penas amarelas dos Iúna em sua casa.
               - Calma! Aci, ele é homem bom! Me protegeu esses dias todos!
               - Como quer que eu acredite que um guerreiro Iúna protegeu uma curandeira Quaraciema por todo esse tempo?
               - Estou viva, não, Aci?
               E a raiva da mãe de Mayara se transformou em gratidão pelo guerreiro da tribo inimiga.
               - Que podemos fazer para agradecer a esse guerreiro?
               Ele disse que queria a mão de Mayara em casamento. O pai de Mayara ficou muito bravo. Achou uma afronta. A mãe de Mayara mandou os dois saírem, disse que conversaria com o pai. Os dois saíram de mãos dadas, nervosos. As penas amarelas de Oribá ficavam lindas junto das penas azuis de Mayara.
               Quando o sol já começava a amarelar o céu azul, Iara, mãe de Mayara, chamou o casal para dentro da oca. O pai de Mayara estava com a cara fechada, mas disse que permitia, que dava a filha em casamento, com a condição de que continuasse na tribo dos Quaraciema, que fizesse um juramento e deixasse de ser Iúna. Oribá concordou. Não queria voltar para sua tribo não.

               Mayara e Oribá passaram a vida toda juntos. Ela até chegou a ensinar sobre algumas raízes e ervas para ele e pediu que ele mantivesse segredo. Viviam ajudando os feridos da tribo, lendo borra de café, colhendo frutos e nadando no Iguaçu. Tiveram dois filhos que se tornaram guerreiros. Foi a primeira vez que o sangue dos Quaraciema de misturou com o dos Iúna. Esses filhos se casaram e deram netos à Mayara. Os netos deram bisnetos. Ela envelheceu até se tornar mayara de verdade.
               Quando viu nos olhos de seu grande amor que a vida já começava a esvair-se, juntou-se a ele dizendo que não podia ficar sozinha. Ele a protegera a vida toda. Ela não aprendeu a se proteger sozinha. Nem quis. E, ao deitar-se ao lado dele na grama aveludada da floresta dos Quaraciema, sabia que levaria consigo todos os segredos de sua tribo por não ter nascido nem uma mulher em sua linhagem. Isso a entristeceu por um momento. Fez a última mistura de ervas e raízes de sua vida, proferiu as últimas palavras encantadas, transformando-os em uma grande e velha árvore enrugada e comprida, que hoje é chamada de Mayara, por conter as rugas da bisavó, que encontrou o amor e passou a vida protegendo sua tribo, mas nunca aprendeu a se proteger.

Link
Leia Também »
Comentários »
Fale pelo Whatsapp
Atendimento
Precisa de ajuda? fale conosco pelo Whatsapp